sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Povo de Lá - V

Mitos existem vários, como o da curva na estrada que se liga a outras cidades, onde muitos já morreram. Dizem que há tempos, uma professora morreu num acidente de carro justamente ali, e até hoje sua alma vaga a procura de uma carona. O engraçado é que foi exatamente ali o acidente com meus pais no primeiro dia do ano. O mesmo acidente da pane elétrica. Quem sou eu pra desmentir um mito assim, tão convincente? São as famosas livusias que habitam o imaginário dos habitantes de Ouro Verde e arredores.
Lenda mesmo eu queria que fosse uma história de uma mineradora que quer se instalar em breve por aqui, como anda fazendo em outras regiões próximas. Aí vamos ter que ver tudo o que foi consumido pelas famílias em 50, 60 anos, serem eximados em 5.
Agora entendo mais a vontade que moveu durante vários anos o meu tio em ser vereador. Dá uma vontade de fazer a cidade progredir sem perder sua identidade, há tanto o que se fazer, tantos modos de promover um desenvolvimento sustentável no seu sentido mais amplo, aproveitando todos os recursos naturais que existem aqui somando com uma educação de qualidade e construtiva. Tornando assim a vida para os jovens muito mais rica e sem a ilusão ultrapassada de que a rotina da cidade grande é mais atrativa. Tudo bem, em muitos aspectos realmente é, porém, o que se vê por aqui é também uma idéia equivocada dos centros urbanos, como um local onde é possível se conquistar todos os bens materiais e “confortos” que aqui não oferece. Mal sabem que o mal daqui é o bem que muitos procuram por lá.
Queria eu que simplicidade um dia não fosse visto como ignorância, e que progresso e desenvolvimento não fossem tão agressivos e arrogantes. Já que não dá pra ter tudo, pelo menos os dois já seria um bom começo.



quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Povo de Lá - IV

E aqui continuo observando e aproveitando o contato com o homem e a natureza, que aqui mais do que em qualquer outro lugar é muito intenso, afinal estão cercados por uma chapada, por matas, morros, rios, riachos e lagoas. Cheguei com minha mania de não deixar a água da torneira aberta, de tomar banho rápido, de proteger os olhos do sol... Aqui essas coisas se tornam banais. Um lugar onde todo mundo tem no quintal manga, banana, coco verde, cana, uva, lichia, limão e galinhas, não dá pra dizer que não vivem bem com o meio em que nasceram. A água limpa da pia e do chuveiro vem do rio. Da mandioca se faz farinha, doces e bolos. Do milho a canjica, o cuscuz, o suco e tantos outros derivados. Como pensar em economizar aqui algo que é tão bom, tão infinito e bem aproveitado? Logo tratei de deixar os olhos a mostra e me deixar levar por tudo isso.




Assim como nadar no rio. As pedras, que são possíveis de ver cada vez que o sol brilha forte,  dói um pouco as solas dos pés e não muito raro, os joelhos também. Mas tomar banho numa água doce e ver o corpo secar logo após sair da água com certeza valem muito a pena. Não é a toa que todo mundo por aqui é neguinho.
As casas com as portas abertas é um entra e sai impensável pra quem vive em uma metrópole . Um passeio a casa de um cumpadi ou cumadi rende um passeio a vários outras casas que também estão com as portas abertas como se fosse um convite eterno, tanto para quem mora, quanto para quem vem visitar. "Filho de quem? Há quanto tempo não vem? Mas que moça grande! É a cara da família de fulano!" 
As coisas mais simples são grandes notícias e novidade. Contam casos rotineiros que pra gente que perdeu a graça em muita coisa, não consegue mais ver tanto motivo de empolgação. Mas tá sendo bem interessante voltar a olhar pra essas prosas, como dizem por aqui, vendo a mesma empolgação e conseguindo rir do mesmo motivo que eles. Ficar feliz porque o filho de outro fulano vai vir passar alguns dias por aqui depois de vários anos de trabalho duro em São Paulo, ou porque a filha mais nova resolveu casar numa cerimônia simples. Ou ainda porque um primo que eu nem tinha mais contato quer me mostrar as fotos bonitas que tirou de uma cachoeira aqui perto.

O Povo de Lá - III

Vejo a nova geração, as primas de 9 e 10 anos como eu e minhas primas éramos há algum tempo. Brincando sem parar, nem aí pro que estava acontecendo na vida dos meus tios e não podendo freqüentar alguns lugares de adulto, como por exemplo, aquele rio com correnteza forte. Poderia olhar com indiferença, ou então viver a minha vida de adulto sem prestar atenção à elas. Mas lembro quando criança das pessoas adultas que eu gostava, e o que eu queria que elas fizessem. Tenho a oportunidade ser pra elas aquilo que eu admirava quando pequena, portanto, vamos ser. Receber de repente um abraço de uma criança significa que estamos de alguma maneira acertando.
E os mesmos adultos que antes me vinham como essa criança que brincava o tempo todo e não estava nem aí pra eles, hoje ouvem o que eu falo e observam o que eu faço.
As pessoas contam muitas histórias daqui e de muitos de lá. De gente que sae e acaba voltando, que vem e vão o tempo todo, com alegrias e tristezas, com vontades distintas. E apesar de estarem em uma cidade pacata, são muito bem resolvidos quanto a essa dinâmica da vida. Sem dramas. Afinal,  o que estaríamos fazendo aqui senão pra viver nossas histórias e vontades. E é assim que a vida se desenha.
E é a vida das crianças que realmente vale a pena por aqui. Andar sozinho, de noite e de dia, a caminho de um rio ou uma cachoeira. Poder pular da ponte e nadar com os outros meninos da mesma idade, brincar com a areia como se fosse o melhor brinquedo. Ter o corpo pretinho e os pés ágeis desde cedo pra enfrentar todas as porteiras e trilhas de pedra pelo caminho. É tudo deles e tudo se pertence, não são áreas restritas e montadas para recriar um universo natural. Os cabelos e a roupa levemente desajeitados combinam perfeitamente com a grama despretensiosa que nasce entre as águas e as rochas.





O Povo de Lá - II

Quanto a família, logo de cara distribui os presentes e recebi em troca um especialmente do meu vaidoso avô. Um livro que retrata a história da região e que tem como tema principal o tal do Reisado e o Mestre Agripino (meu avô) como mentor. Uma comemoração aos três reis magos, que une o sagrado e o profano no mesmo momento. Cheguei bem na hora da comemoração e passei os dias ansiosa para a chegada de uma das festas mais importantes e populares daqui. Trouxe pandeiro pra e triângulo, e assim a festa ficou completa. Uma honra fazer parte de um conjunto com rabecas, violões, pandeiros e sanfonas. Gente que aprendeu a fazer música com o coração.

Os mais novos aqui só gostam de uma espécie de arrouxa e axé, com letras xexelentas e repetitivas, cheia de duplos sentidos. Até é engraçado. Mas por outro lado, sinal de que não gostam muito do que é típico daqui e que os pais e avôs lutam tanto pra manter. Coisa de adolescente, faz tudo ao contrário só pelo prazer de ser contrário. Só fico pensando se essas coisas que vim buscar aqui na terra dos meus pais e familiares não vai um dia se acabar por causa dessa ½ dúzia de pessoas. Espero que não.

Essas mesmas pessoas ficam na praça central da cidade que tem apenas uma ½ dúzia de ruas de terra e algumas de paralelepípedo. Sentam no quiosque da praça toda pavimentada e azulejada com pastilhas coloridas e sem nenhuma árvore, que foram todas arrancadas pra construção da praça, ouvindo um som alto ensurdecedor todo final de tarde. Na esperança de se divertir muito com isso, sei lá se divertem-se mesmo.
Minha avó e as duas tias que voltaram a morar aqui depois de anos viraram evangélicas, abandonaram a origem católica e a igreja do Bomfim, símbolo e figura central de toda boa cidadezinha. Meu avô a essa hora está lá começando a festa de reis em outra cidade próxima. Minha mãe continua brigando com meu pai pelos mesmos motivos de sempre, buscando ele de boteco em boteco, e eu continuo aqui, vendo fotos antigas, revivendo e descobrindo através da minha família um passado que eu deixei pra trás, totalmente sem consciência. Certamente criando alguma agora pra continuar com algumas outras certezas também.

O Povo de Lá - I


Depois de longas viagens por lugares inóspitos e cheio de contrastes, era hora de viajar por caminhos já conhecidos, porém distantes.
Ano novo sem fogos e champanhe, a caminho do interior da Bahia. O ano terminou com tudo resolvido pra minha família. Era hora de descansar e eu precisava estar junto.
Saindo de casa dia 31, com intermináveis 24 horas de viagem que já me fizeram pensar em como seria a volta dali a poucos dias.
Minha mãe nos recebeu na casa dos meus avós para nos dar o que comer e contar as novidades dos últimos 15 dias. Quase que chego e não os acho! Meus pais, na volta da comemoração de ano novo, caíram com o carro em um barranco, bem na curva. Minha prima que estava dirigindo disse que foi uma pane elétrica. Não sei direito, ela costuma confundir coisas básicas do carro e tenho minhas dúvidas quanto o real motivo, mas não importa. Importante mesmo é que todos ficaram bem, ninguém se machucou e resultou que minha prima ficou meio apaixonadinha pelo mecânico que a ajudou a consertar e tirar o carro do buraco. Minha mãe continua então com mais medo do que todo o resto do mundo, e isso tinha que acontecer justamente com ela. Paciência.
Como disse um dos tios que conheci aqui no dia seguindo, o tio Aury que também caiu no barranco um dia desses, o que ele ia fazer? Chorar? Nada disso, como um bom baiano tratou de subir o morro tranqüilo pra pedir ajuda, e como bom brasileiro que é acabou é ajudando outros motoristas que passavam por ali e queriam informação. Uma figura extremamente simpática. Assim como todos aqui.
Só de passar nas pequenas ruazinhas é suficiente para os moradores te cumprimentarem, e forte. É aperto de mão e beijo seguido de um forte abraço, de homem, mulher e criança. Ô povo que abraça forte. Tia Hercília, irmã do meu avô nos fez uma visita, e apesar de não gostar muito de ser apertada, o abraço dela valeu a pena tamanho a energia dessa senhora magrinha de 76 anos. 


Vou tomar emprestado um trecho da musica do Pato Fú que uma outra tia minha usou pra descrever esse vilarejo: Vai diminuindo a cidade/Vai aumentando a simpatia/Quanto menor a casinha/mais sincero o bom dia.
Almoço é cada dia na casa de uma família. As casas inclusive são muito parecidas, tanto nos materiais da construção que hoje são de alvenaria, mas que já foram de adobe, quanto na arquitetura simples e quadrada, com uma porta central e janelas quadradas de cada lado. Sinônimo de simplicidade, mas também de um pouco de ignorância por não dominarem outras técnicas mais avançadas. Depois de ver como povos tão antigos como os incas eram sábios e sabiam aproveitar a natureza a seu favor, to começando a olhar os povos de outra maneira. Até que ponto o conformismo não é o nosso mal...